PERCEBER O OUTRO QUE HÁ EM SI
Militante pela inclusão das tradições africanas na Educação, Sandra Petit, 56, é de Cuba, reside no Brasil há mais de 20 anos e é mãe de Kanyin, 8. Ela fez da trajetória diaspórica um instrumento de ligação ancestral e transformação social de si e do outro. O POVO - Quais as condições que marcaram para a mulher que você é hoje?
Sandra Petit - Eu acho que eu tenho muita influência de pai e mãe, minha mãe (Rosário Maria Paes) é uma pessoa de personalidade muito forte, ela é de Iemanjá e ela é muito mãezona mesmo e forte, ela sempre me repassou a relação com a ancestralidade. E mesmo eu morando fora, em um país europeu (França) ela me passava muito isso. É uma pessoa que sempre acreditou nos meus estudo, no meu avanço. Meu pai também (Antoine Petit) porque é um intelectual. Ambos tinham ideias progressistas, então meu pai me incentivou bastante, não só nos estudos mas também a ser uma pessoa autônoma. OP - A partir dessas condições, o que você escolheu ser?
Sandra Petit - Eu acho que eu fui muito marcada pela minha condição afrodiaspórica, sempre buscando minhas raízes, então as minhas escolhas foram muito nessa direção. De procurar estudar algo que tivesse a ver com o terceiro mundo. Que tivesse a ver com alguma possibilidade de interferir nessas realidades. O meu interesse pelo Brasil nasceu de todos esses encontros, e é interessante que eu não tinha uma relação prévia com o País, mas ela foi se construindo, eu sempre penso que é espiritual, porque era para acontecer. OP -Quais são os desafios para a igualdade humana plena?
Sandra Petit - Quando cheguei aqui eu percebi um contexto de racismo muito forte. A humanidade, o planeta de modo geral, está passando por uma fase muito conturbada de diversos racismos acirrados e eu penso que neste momento nós temos que fortalecer as nossas redes de combate a esse processo. Dentro da educação há muitas possibilidades de transformação, eu vejo isso diariamente, eu sou muito feliz no meu trabalho, porque eu vejo as transformações na minha frente. Eu também participo e me transformo junto com as pessoas, não existe iluminismo. Mas eu percebo que quando você permite que as pessoas tenham acesso a determinados conhecimentos, e isso com abordagens condizentes com aquilo que você acredita, você consegue ver mudanças. Eu acredito muito em uma forma de pensamento mais espiritualizado de um modo geral, não especificamente religioso mas espiritualizado no sentido de reconhecer o outro que faz parte de mim e eu faço parte do outro. Consequentemente como é que eu posso querer que o outro não exista? Todos nós estamos envolvidos um com o outro e precisamos encontrar uma forma de convivência porque o planeta depende disso.
EDUARDA TALICY, JORNALISTA A trajetória até aqui tem a forca e a marca de muitas mulheres que me fazem ser. Vem daí o desejo de ouvir, pensar, sentir e ser também caminho para a existência plena do outro. Sigo na tentativa.
SOBRE O AUDIOVISUAL Quatro mulheres, quatro trajetórias, quatro experiências, quatro visões de mundo. O webdoc, que leva o mesmo título desta série especial, apresenta um pouco do pensamento da Alicia, da Anette, da Lívia e da Sandra. Na conversa imaginária entre elas, propiciada pelo cruzar de seus depoimentos, as quatro abordam processos e viveres que as tornaram as mulheres que são. Ao mesmo tempo em que sinalizam trilhas para ir além, em busca de tempos melhores, com menos diferenças e mais afirmação. Falas distintas que se complementam a partir do encantamento fornecido pelo encontro (ainda que virtual). Você pode assistir em www.opovo.com.br/videos
UM VOO DE ARTE E FORÇA
Alicia cresceu projetando ser borboleta. No casulo de isolamentos entre o bairro Montese, o colégio Marista e as férias no Interior, sonhava com a vida no que chama de universo paralelo, um “lugar” onde poderia se olhar e se reconhecer. Encontrou a arte, os palcos, os espetáculos como drag queen, a própria sexualidade. Aos 32 anos, ainda tem os próprios incômodos e questiona se já é ou ainda será aquela borboleta. Só sabe que já voa nas possibilidades (e cobranças e angústias) de ser uma atriz (“o que mais gosto”), maquiadora e cabeleireira (“porque tenho que me virar nos 30”) que é mulher-trans-barra-travesti.
O POVO - Quais as condições que marcaram para a mulher que você é hoje?
Alicia Pietá - Eu digo que a arte transforma, tem esse poder de transformar. No meu caso, me transformou demais. Eu me descobri enquanto mulher trans de maneira muito natural, de maneira meio ingênua até. Até então eu achava que a minha identidade era apenas uma. E eu disse “não. não sou bem isso”. Essa mulher surgiu a partir das minhas vivências no teatro, em que pude interpretar várias outras coisas e eu disse “é isso o que eu sou, não tem como fugir”. Essa mulher que eu sou hoje eu devo ao teatro. Lá eu pude dizer: sou Alicia Pietá. OP- A partir dessas condições, o que você escolheu ser?
Alicia - Eu decidi e sempre fui uma pessoa forte. Sempre questionei — “por que não pode?”, “por que não?”. Sempre. Desde criança — “por que não pode brincar com isso?”, “por que não posso ter o cabelo assim?”. Eu sempre perguntava. A partir desse descobrimento “sou Alicia Pietá” foi que eu disse que ia ser sempre essa mulher às vezes chata por não me conformar com o que é dito, e que não se conforma com o imposto, o comum. Eu sempre achei que eu seria, que eu sou, assim. Foi de maneira muito natural. Aí vem a história da borboleta: a gente busca chegar nesse nível, sair do casulo, pra lagarta e pra borboleta. Isso é muito comum de se associar à trans, a uma mulher que está em transformação qualquer. Porque é uma das transformações mais incríveis da natureza. E a gente busca isso. Eu tô sempre procurando trazer alguma coisa boa. É muito gratificante quando alguém diz “Alicia, você me inspira”. Isso me motiva. E é essa mulher que eu quero ser, essa motivação. OP - Quais são os desafios para a igualdade humana plena?
Alicia - Essa igualdade vai ser conquistada principalmente com respeito. Existem infinitas pessoas, infinitos gêneros, sexualidades, pensamentos, comportamentos. Acho que respeito é a base de tudo. E educação. Pode parecer clichê, mas é isso. Se eu te respeito e você me respeita, a gente busca uma equidade, um equilíbrio no qual a gente possa viver. Acho que a gente nunca vai ter 100% de igualdade, infelizmente, em nada. O ser humano é muito louco. Mas essa busca é o que importa.
MARIANA LAZARI, JORNALISTA Descobri que é possível ser mulher e livre há pouco tempo, num soco da vida que se tornou empurrão para coisas boas. Decidir sobre o próprio corpo e o próprio destino é uma conquista — e eu sou feliz por partilhar a minha com outras mulheres incríveis.
SOBRE A COBERTURA
Além destas páginas e do webdoc, a cobertura do O POVO neste Dia Internacional da Mulher contempla também análise e reportagens. No Editorial (Página 24), o jornal lembra que a celebração ocorre em meio a um movimento por direitos, igualdade e justiça. Na ETC, a repórter Lívia Priscila pediu a cinco mulheres que indicassem livros e filmes que marcaram suas trajetórias na luta por uma sociedade mais justa (Página 23). Reportagem assinada pela jornalista Eduarda Talicy (Página 21) mostra a igualdade de gênero ainda está distante. No suplemento Veículos, a repórter Amanda Araújo fala da paixão das mulheres pelos motores em aventuras de pura adrenalina.
‘‘VIVER PRECISA SER COM PAIXÃO”
Do interior da Inglaterra para o Ceará. Há 35 anos, sem falar português, trazida pelo marido brasileiro, Marcos. Foram dois anos chorando de saudade, com o dinheiro da passagem de volta guardado. O sofrimento, conta Annette Reeves de Castro, atual vice-presidente da empresa Mallory, é necessário. Nos faz ver além, mesmo que apenas depois das lágrimas.
Foi com essa premissa que a executiva seguiu seus desafios, sem muita escolha, com coragem, sendo filha da mulher que lhe inspira - a mãe, egípcia e forte. E com características das mais importantes: sem se considerar inferior por ser mulher, apesar da consciência sobre a realidade; e sem perder o respeito ao próximo. Para Annette, ser dos filhos (Sasha e Thomas) não significa culpa em estar ausente, mas ser deles quando está de volta. Viajar. Parar em um só local sempre foi incômodo. Hoje, cônsul da Holanda e organizadora do grupo Mulheres do Brasil, reúne quem quer e pode fazer a diferença. Na política, na saúde, na assistência, na educação. Annete sorri e abraça como cearense. O POVO - Quais as condições que marcaram para a mulher que você é hoje?
Annette Reeves de Castro - Eu tive um divisor de águas quando vim para o Brasil. Fui criada e educada na Inglaterra, em uma situação altamente privilegiada. Então, a mudança da minha rotina foi um grande momento na minha vida. Ter filhos, acho que é uma mudança radical. O momento em que eu perdi minha mãe também, eu era muito nova e acho que sofrimento na vida marca a gente. Então quando eu a perdi, foi um outro momento também na minha vida. OP - A partir dessas condições, o que você escolheu ser?
Annette Reeves de Castro - Eu não acredito que escolhi ser. Eu fui trilhando a minha vida com alguns conceitos muito claros à minha frente. O que eu fosse fazer, que fosse o melhor possível. Quando eu era estudante na Inglaterra, durante as férias era faxineira de uma fábrica de refrigerantes. Mas eu tinha de ser a melhor faxineira. Aquilo que a gente estiver fazendo, que façamos da melhor maneira, que busquemos ser melhor e ter o maior conhecimento. E fazer só aquilo que faz bem, que traz felicidade, que a gente possa se apaixonar. Fazer só para ganhar dinheiro ou porque não tem opção faz mal. Estamos aqui para viver, mas precisa ser com felicidade e paixão. Precisamos ser apaixonados e desafiados em todos os momentos da vida. OP - Quais são os desafios para a igualdade humana plena?
Annette Reeves de Castro - Talvez seria melhor a gente tentar buscar a igualdade, a justiça social, e cada um de nós entender que pode fazer a diferença. Da nossa maneira, no ambiente, no nosso dia a dia, fazer a nossa parte para mudar a realidade da injustiça social, que infelizmente vemos muito ao nosso redor aqui no Brasil, na nossa região. É sermos protagonista nessa causa.
SARA OLIVEIRA, JORNALISTA Eterna aprendiz. Sobre ser mulher, filha, mãe. Corajosa para descobrir e cheia de medos das perdas da vida. Feminina como quer, ancestral nas entranhas. Apaixonada pelas escolhas, principalmente a profissional. Sou Maria, com fé e sem religião.
FORÇA TRANSFORMADORA
Estagiária do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, Lívia Thais Morais, 22, utiliza a arte para discutir política com a estudantada. Assim como aconteceu com ela, anos atrás, quando entrou num grupo de percussão organizado por amigos da sua rua, no Conjunto Palmeiras. Já acostumada com a violência cotidiana – a falta de médico no posto, o calor da escola, os amigos assassinados, o machismo – foi descobrindo que podia transformar-se e ajudar a transformar a realidade da comunidade. “Milito pela vida! Pode não ser hoje. Pode não ser pra mim. Mas pensar que no futuro teremos vitórias maiores me mantém forte”, diz, grávida de três meses. O POVO - Quais as condições que marcaram para a mulher que você é hoje?
Lívia Thais Morais - Passei por processos muito difíceis. Eu fui criada dentro de um terreiro (de umbanda). Então, sofria muito preconceito na escola. Era “macumbeira” e não tinha pai. E ainda por ser preta, ter o cabelo black. Moradora de comunidade. Tinha que me locomover pra estudar no Centro porque aqui só existia uma escola de ensino médio e não tinha vaga. Não ter uma casa própria, mudar sempre, ter que morar de favor. Isso tudo foi me marcando muito da importância de transformar e buscar um futuro melhor. OP - A partir dessas condições, o que você escolheu ser?
Lívia Thais - Eu não escolhi. Acho que foi acontecendo. Aquilo que eu acreditava que era mais bonito aquilo, que me mexia, que me fazia acreditar. Eu tive um processo de me reconhecer, de ver que eu não precisava seguir certos padrões. A música e a arte foram importantes porque me fizeram enxergar outras possibilidades, perspectivas de mundo. Não era só pegar um tambor e tocar. Mas como isso interferia na minha vida. As pessoas passaram a me dar importância por eu saber me expressar, mesmo sendo tímida. Quando o espaço lhe reconhece, tudo muda. Quando lhe dizem “Lívia, você é importante. O sistema diz que você não é, o Estado diz que não é, mas eu estou dizendo que você é, que você está transformando vidas”. Aí você vai mudando sua concepção de pessoa, de mulher. OP - Quais são os desafios para a igualdade humana plena?
Lívia Thais - Todos. Acho que a gente conseguiu politizar um pouco mais e alguns homens conseguem entender esse espaço. Mas em tudo a gente vê polêmica. Por ser mulher, você não pode andar sozinha na rua à noite porque é perigoso. Você não pode andar de short curto. Se você é mãe tem que mudar seus hábitos. Você só pode ser isso: mãe. Todo dia impõem uma coisa nova. Ainda estou no processo de assimilar que vou educar uma criança que vem ao mundo. Acho que vou conseguir ensinar a amar sua cor, seu cabelo, suas raízes, respeitar o próximo, cuidar, querer uma sociedade melhor e saber que ele ou ela tem um papel importante nessa sociedade.
SÍLVIA BESSA, JORNALISTA Em diálogo com a Lívia, sou cheia de privilégios. Branca, classe média, jornalista. Mas isso não me define por completo. E, como ela, convivo com uma cultura machista opressora. Sigo desaprendendo a ser a mulher que esperam que eu seja.
TATIANA FORTES, FOTÓGRAFA
Ser mulher é uma busca constante de equilíbrio na vida. É ser honesta com as minhas escolhas. É ter leveza comigo e com o mundo. É também aprender diariamente com as mulheres maravilhosas que tenho o prazer de fotografar.
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