Carnaval é feito arrebentação, é respingo de mar em dia quente, é onda que bate forte e deságua! Nas bandas de cá, Carnaval é benção de padre em moço vestido de noiva, são uns oito Marios e Luigis que se encontram aleatoriamente no meio da folia, é Mulher Maravilha que beija Capitão América num crossover de paixão! Carnaval é o Mercado dos Pinhões que transborda e inunda um Centro, é o sorriso da cachorrinha Valentina sendo carregada pela tutora Carine em meio aos confetes. Carnaval é também gente que não vive a Cidade o ano inteiro e está lá, no meio da rua, aos berros: "Ei, onde fica a Mocinha? É perto? Posso ir pé?", e aí Fortaleza vira encontro. Carnaval é chuva em terra seca e é grito!
Era promessa certeira. De dez chances, nove garantiam: menina, quando o Carnaval chegar e a saudade já não mata a gente, a felicidade vai desabar sobre os homens! E era sábado quando desaguou num pau d'água que ia indo e vindo e ditando o ritmo da folia. Parece mesmo que a chuva ajuda a gente a se ver e não tinha quem arredasse o pé da rua. Se era de chover, se abraça debaixo do guarda-chuva, se encosta na beirinha que tem no abrigo da marquise, ou se beija enquanto pinga, que beijo é bom molhado.
Tal hora, uma moça bonita de olhar agatinhado era uma onça-pingada! E tudo de caso pensado: Ivone Barcellos, 34, decidiu a fantasia justinho para combinar com o guarda-chuva e lá estava mulher-onça, no Num Ispaia Sinão Ienche, balançando a sombrinha, espalhando água! De guarda-chuva na mão e remelexo nos pés, as irmãs Iva, 76, e Ana Carvalho, 80, iam costurando a multidão. "Ninguém tem medo de chuva, não. A gente veio para os prés tudinho debaixo d'água, não ia perder o Carnaval por isso. A gente vem aqui há mil anos", conta Iva nesse exagero de quem já viveu 80 carnavais e têm energia para mais 80.
É que Carnaval é mesmo superlativo, é desbunde, é jogar o corpo no mundo. De peito aberto, de fora, Cláudia Brasil, 36, tinha tatuagens temporárias no corpo dos gritos de todo dia: "Não é não" e "Meu corpo, minhas regras" para espantar a possibilidade de assédio. Era vontade antiga que o Carnaval trouxe a coragem. "Achei que o Carnaval era o momento de demarcar o direito sob o meu corpo, de me mostrar como sou, lembrar que todo mundo tem peito, e dizer que mulher nenhuma é objeto de ninguém". Cláudia falava e ao fundo a Ponte Velha se emprestava, virava rua Marielle Franco, numa dessas plaquinhas que iam sendo levantadas Carnaval adentro, feito muitas lutas.
Como a de Janete Cosme, 43, de ver o Poço da Draga sendo folia. "É bonito demais fazer parte da festa, ver esse monte de gente olhando pra comunidade sem medo. A gente se sente abraçado", diz e logo ali uma menina-sol, se enlaça a Iracema, ao Bode Ioiô, ao poeta Mário Gomes, a Preta Tia Sioma. Os saxofones ecoam, o cheiro de querosene da lança-chamas impregna as narinas e muitas mãos, muitos rostos se entrelaçam, numa pintura cubista, um bloco. Viver o Carnaval debaixo do bode que serpenteia é como ter arrumado as malas e fugido com um circo mambembe. O coração vira uma tenda colorida e se encontra com a La Femme Bateau, trazida para a folia pela ressaca do mar.
Na Fortaleza que é muitas, Carnaval é a peleja de ser resistência. Uma profusão de flores que se ajuntaram num arco-íris pertinho do mar do Poço, Zé Filho e Vinicius Vidal eram um retrato do Carnaval que não aceita que lhe digam como amar. "Carnaval sempre foi pra mim onde eu podia ser quem eu quiser. E as pessoas deveriam carregar mais isso dentro de si". Conta como quem segreda uma fórmula: é que para ser feliz o ano todo basta só roubar um pedaço de Carnaval e levar dentro do peito.
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