A Rodovia Transamazônica, BR-230, cruza o Brasil de oeste a leste. De Lábrea, no Amazonas, até Cabedelo, na Paraíba. Mais de 4.223 km de extensão total, mas boa parte, mais ao Norte, nunca foi nem sequer pavimentado. Há trechos assim ainda desde os anos 1970, quando a estrada foi inaugurada. No caminho pelo Ceará, a estrada passa ao sul do território e não é das melhores para trafegar no Estado. Uma irregularidade descoberta pela Controladoria Geral da União (CGU), na execução de um contrato de recuperação e manutenção de trecho próximo ao município de Farias Brito, no Cariri cearense, nem é tão perceptível a quem passa dirigindo pelo local. Parece até discreta, mas representa R$ 2,3 milhões em superfaturamento aos cofres federais.
O contrato total firmado entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) e a construtora Ápia é no valor de R$ 39,5 milhões. Dessa quantia, a empreiteira já recebeu R$ 4 milhões (10,24%), faturados e pagos. O acerto previa obras e serviços Desde reparos na pista e acostamento à recomposição de drenagem e sinalização da rodovia até Lavras da Mangabeira - cerca de 70 km entre as duas cidades. Numa das principais irregularidades constatadas pela CGU, pontos da sarjeta, acostamento e meio-fio que formam a estrutura de drenagem deveriam ter sido reconstruídos em concreto, porém, o material usado no local foi apenas argamassa.
"É um material que esfarelava na mão dos fiscais", descreve o chefe regional da CGU, Roberto Vieira de Medeiros. A situação surpreendeu até mesmo os fiscais do órgão que atuaram na inspeção. Alguns pedaços da argamassa "arrancados com a mão" estão guardados no escritório da CGU em Fortaleza. Se apertada mais fortemente, a peça chega a se desmanchar em algumas partes. "Só fizeram a restauração com essa argamassa, de qualidade muito ruim, arenosa. Foi um tipo de falha muito primária, elementar. Faz muito tempo que a gente não vê esse tipo de erro. É falha cabal de acompanhamento com relação à execução", diz Medeiros.
A CGU calculou a cifra superfaturada a partir do que foi (ou nem foi) executado fora das especificações contratadas nos serviços de drenagem. O relatório da CGU registra cálculos e medições técnicas de cada irregularidade apontada. Meios-fios que deveriam medir 30 centímetros foram encontrados com 21 ou 23 cm, e com volume de concreto apenas 41% dentro do que fora acertado. O malfeito saltou aos olhos. A sarjeta de drenagem deveria ter 125 cm de largura interna, foi executada com 80 cm, cerca de 1/3 menor.
"As sarjetas argamassadas estão todas trincadas. Essa situação permite a infiltração de água para a base da rodovia, o que causará a degradação de toda a estrutura granular e, consequentemente, afetará a estabilidade do pavimento", apontaram os auditores. O projeto contratado "previa a implantação de meio-fio, não a recomposição dele", descreve o documento da CGU. Não poderia, portanto, passar apenas por recuperação, mas deveria ter sido refeito. A fiscalização do contrato e da execução das obras cabia ao próprio Dnit, através da Unidade Local (UL) de Icó.
A inspeção no trecho cearense da Transamazônica foi feita em novembro de 2017. O relatório final da CGU foi concluído em maio deste ano. Em fevereiro, um documento prévio chegou a ser apresentado à direção geral do Dnit, em Brasília, que fez o alerta à superintendência no Ceará. Aconteceram reuniões entre os dois órgãos para discutir medidas que poderiam contornar a situação. O então superintendente local do Dnit, Francisco Caminha, também recebeu em seu gabinete diretores e engenheiros da construtora Ápia, para tratar da situação da BR-230.
Apesar do contrato ainda vigente, a Ápia interrompeu os trabalhos na rodovia desde que a situação foi apontada pela CGU. Informação dada ao O POVO no último dia 9, por Caminha, exonerado do cargo naquela mesma data. Ele foi superintendente do órgão desde março até a semana retrasada - nem era o chefe do órgão à época da inspeção da Controladoria. Na última sexta-feira, dia 17, a engenheira civil Liris Campelo, analista de infraestrutura do órgão, tomou posse como a nova superintendente regional do Dnit. No início da semana passada, ela visitou trechos da BR-230 onde foram detectadas as irregularidades.
Os recursos para pagamento do contrato são do Programa Integrado de Revitalização "Crema-1ª etapa", o plano permanente da autarquia para conservação, recuperação e manutenção de rodovias.
EXPLICAÇÕES DO DNIT-CE POR REFAZER
Medições de trechos de obras na BR-230 no Ceará, auditados pela CGU, já tiveram os pagamentos estornados pelo Dnit. E medições futuras serão anuladas, até chegar ao valor apontado como superfaturado. Informação do ex-superintendente local do órgão, Francisco Caminha. A empresa também teria se comprometido em refazer serviços apontados pela CGU.
NOVA CHEFE
Na última sexta-feira, foi empossada a nova superintendente do Dnit-CE, Liris Campelo. Caminha passou apenas cinco meses no cargo - saiu para trabalhar na campanha eleitoral. Tanto Caminha como Liris consideram a análise feita pela CGU nos serviços da BR-230 como "pontual".
INTERNAMENTE
A CGU recomendou apurar possíveis responsabilizações dentro no Dnit. Segundo Caminha, "ainda não teria sido identificado erro de servidores".
DINHEIRO PÚBLICO
O chefe da CGU no Ceará, Roberto Vieira de Medeiros, faz questão de exibir a peça de argamassa, arrancada com a mão por um dos fiscais do órgão, trazida de trecho auditado da BR-230, próximo a Farias Brito. O material estava entre a sarjeta e o acostamento, área dada como refeita no serviço contratado pelo Dnit-CE. No lugar deveria haver concreto. "Isso é claro desperdício do dinheiro público. Deveria ter durabilidade, mas você vê que iria se perder rapidamente. Se arrancaram com a mão, imagine o que pode acontecer ao pneu de um veículo". Medeiros admite ser comum encontrar obras que não atendem a especificações técnicas dos contratos, mas considerou a falha descoberta pela CGU como "gritante".
O que diz a auditoria da Controladoria
O CONTRATO
A BR-230 passaria por obras e serviços de manutenção rodoviária através do contrato UT-03.1.0.00.000276/2016-00, a cargo da Construtora Ápia. Vigência de 1.080 dias, a partir de 17/5/2016. É um trecho da Transamazônica próximo ao município de Farias Brito, no Ceará.
VALOR TOTAL
R$ 39.548.960,44.
(Mais R$ 1.150.000,00 em contrato de supervisão da obra, com a JBR Engenharia. Vigente desde 9/8/2017)
DATA DA INSPEÇÃO
De 6 a 10 novembro/2017. CGU apresentou relatório em maio/2018.
O QUE JÁ FOI PAGO
R$ 4.033.066,41. Repasse parcial feito somente à construtora Ápia, o equivalente a 10,24% dos serviços contratados. Não chegou a haver pagamento à supervisora JBR Engenharia.
O QUE FOI CONSTATADO
- Superfaturamento na execução de dispositivos de drenagem (meio-fio, acostamento e sarjeta). Trabalho não foi executado ou foi feito em desacordo com as especificações técnicas e composições de preços. Prejuízo estimado: R$ 2.300.188,50.
- Pagamento irregular de serviços de construção de barracão para canteiro de obras. Valor apontado: R$ 26.466,80.
- Unidade Local do Dnit em Icó servindo de depósito temporário de veículos e motos apreendidos, a pedido do chefe da delegacia e do juiz da comarca. É mencionado no relatório a invasão do imóvel e o furto de peças de veículos.
O CÁLCULO DO SUPERFATURAMENTO
Feito a partir de medições técnicas do que foi ou deixou de ser executado fora das especificações do contrato.
ALGUMAS DAS IRREGULARIDADES
- Meios-fios que deveriam ter 30 centímetros foram feitos com sete ou até nove centímetros a menos.
- Volume de concreto em 1 metro de meio-fio estava com apenas 41,42% do que estava previsto.
- Sarjetas triangulares que formam o sistema de drenagem deveriam ter sido refeitas em concreto, mas em vez disso receberam remendos de argamassa.
- As mesmas sarjetas deveriam medir 125 centímetros na largura interna, mas os auditores da CGU encontraram alguns pontos delas medindo 80 centímetros.
- Os auditores afirmam ter encontrado vários pontos de meio-fio não contemplados no projeto contratado, mas dados como medidos e pagos à revelia.
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