O Carnaval de Fortaleza pode ser a primeira vez de quem viu o maracatu ou a milésima. Pode ser também um médico que guarda em si um palhaço, um professor que se sabe rainha, uma travesti sem medo. Pode ser ainda um grupo de ex-alunos e suas fardas assinadas por saudades; ou um corpo só, refeito de glitter, a abraçar o tempo. Pode ser, simplesmente, a folga em prosa e brinde nas calçadas; e até o trabalho cantado, em um samba e outro, enquanto se catam latas ou palavras.
Ou o Carnaval de Fortaleza pode ser aqueles dois meninos negros descalços, na subida da João Cordeiro, que suspenderam a venda do churrasquinho para um minuto de glória: dançar um batuque improvisado nas palmas de quem, passando no rumo da Mocinha ou do Aterrinho, reparou na infância deles. A luz do poste iluminou o azul daqueles meninos. Era Carnaval.
Em síntese, o Carnaval de Fortaleza pode ser cada um: tem tantas faces e narrativas quanto somos e vamos nos reinventando. E é, em essência, o Carnaval dos encontros: com os amigos, as memórias, a autoestima, as canções, o bonito, as ruas, os prazeres urbanos. A felicidade possível.
Este ano, oito polos oficiais convidaram ao Carnaval em Fortaleza: Domingos Olímpio, Aterrinho, Mocinha, Passeio Público e os mercados dos Pinhões, da Pontes Vieira, da Aerolândia e dos Peixes. Além deles, pelos caminhos, as pessoas se faziam festa e cortejavam a Cidade. Aconteceu o encanto outra vez.
Cadeirantes sambaram, houve bonecos gigantes, ouviu-se Cartola como ainda não se tinha ouvido, dançou-se carimbó como ainda não se tinha dançado. Na Gentilândia, juntaram-se mil tribos: marchinha, frevo, rock, maracatu. E, entre a Rua dos Tabajaras e o Dragão do Mar, uma Iracema, travesti e índia, casou-se com um bode boêmio. Sim, aconteceu o espetacular em plena Fortaleza.
No meio dessa metamorfose de fevereiro, perguntaram se Fortaleza queria ser Olinda. Não. Fortaleza quer ser só ela mesma. Com suas fantasias de realeza, de miçangas do Centro, de glitter. Com a excelência de Tarcísio Sardinha, a resistência do Luxo da Aldeia, a homenagem a Nirez, ou a procura por Belchior. Com os sujos nas ruas, os mascarados nos bailes, seminua nas esquinas. Com os mugangos e a boniteza às avessas. Com o brilho falso de uma riqueza desigual. Vaiando a chuva, para dançar com ela minutos depois. Com suas contradições e superações. Perdendo e se encontrando, antes que tudo vire cinzas.
O Carnaval de Fortaleza é feito cada um, por se refazer. Cantamos, no luto de um bloco que morreu, outras mil canções. Somos muitos, muitos carnavais porque o Carnaval é a reinvenção de nós mesmos, de nossas liberdades censuradas. Pode ser, por exemplo, o amor embriagado beijando a amizade, ou o desejo encarnado, ou a última inocência. E é o espanto e a tolerância, a brincadeira e o respeito no mesmo espaço apertado.
Uma primeira vez, uma despedida. Um reencontro aos oito ou 80 anos.
O Carnaval é o que ainda não sabíamos que éramos: felizes. São as nossas mil e uma narrativas. Igual à Cidade.
CARNAVAL
NO MEIO DESSA METAMORFOSE DE FEVEREIRO, PERGUNTARAM SE FORTALEZA QUERIA SER OLINDA. NÃO. FORTALEZA QUER SER SÓ ELA MESMA
PONTO DE VISTA
No Carnaval
Se o Carnaval é o ápice das alegrias individuais, é ainda a catarse coletiva de uma Cidade acostumada a farrear, mas que o faz só uma vez no ano com tamanha ênfase e concentração de energia. Assim, nos quatro dias de festa enfatizaram-se, além do espírito festeiro, ausências e excessos comuns nestas Fortalezas. Se falta(ra)m lixeiras, calçadas, gentilezas dos carros com os pedestres, sobra(ra)m, por exemplo, flanelinhas loteando as ruas (e cobrando caro). São itens normais na rotina urbana, mas que foram mais vistos e sentidos porque os nossos expedientes com a rua foram mais longos por estes dias. Explico: se, em dias comuns, os percursos são curtos e o aproveitamento de praças e mercados chega a ser breve, no Carnaval foram muitas horas de pés (e danças e alegrias) no asfalto — porque o expediente folião começava pela manhã na Gentilândia e ia terminar à noite no Aterrinho da Praia de Iracema. Por isso pudemos perceber que os incômodos que parecem pequenos e são superáveis quando a praça é passagem de um caminho que continua (como a falta de lixeiras para depositar a lata de cerveja) são enormes quando a festa fica por horas ocupando a mesma praça (e as lixeiras existentes lotaram quando o relógio não marcava meio-dia).
O poder público até tentou controlar o comércio ambulante não credenciado ou o trânsito no entorno dos locais de festa. Mas a Fortaleza de Carnaval não seria diferente da Fortaleza do Cotidiano. Se não há fiscalização eficaz corriqueiramente, por que haveria de ter nestas dias com maior demanda? Se não há respeito aos pedestres e às calçadas diariamente, por que mudaria nos dias que se entendem de liberdade?
O desafio que se apresenta diante desta festa necessária é mais cuidado dos indivíduos e do poder público com os outros e com a Cidade. A alegria está no espírito coletivo e as oportunidades de ocupação dos espaços são notáveis e possíveis. Faltam fiscalização e um ordenamento mais condizentes com o que a dinâmica da festa. Atitudes que permitam, inclusive, que o Carnaval ocupe outras áreas.
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